Monday, October 8, 2007

"A doçura que não se prova"

"E o Outono vai-se instalando. A princípio nem parece uma estação.É quase um estado de alma, este tempo assim um pouco vago, em declive delicado, com a chuva ainda rala e o vento que parece um miúdo a aprender a assobiar. Nos campos, no entanto, as folhas tremeluzem iluminadas, cheias de cor. Os frutos têm perfume e sabores densos. Ouve-se, aqui e ali, decidir vindimas.
Lembro-me de um poema de Miguel Torga, cujo centenário de nascimento recentemente celebramos, que refere e relança estas coisas todas:
O que é bonito neste mundo e anima,
é ver que na vindima
de cada sonho
fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura que se não prova
se transfigura
numa doçura
muito mais pura
e muito mais nova

Neste arranque de Outuno, deixo-me prender pelas palavras "a doçura que se não prova". Tendo o privilégio de acompanhar a vida de muitas pessoas, sei que esta não é uma questão que se possa iludir. Há um momento na nossa vida, ou há momentos nela, em que fazendo um balanço, sentimos que ficámos aquém dos nossos próprios sonhos. Esperávamos isto e aquilo que não aconteceu. Desejávamos uma plenitude e temos uma estreita e estranha normalidade. Sentimo-nos, sem saber bem como, a viver sob tectos baixos. Há uma espécie de doçura prometida que nos escapa, que fica adiada, que começamos talvez a julgar inacessível. Por vezes, este sentimento vem aos 70 ou aos 40 anos. Mas também surge aos 20 ou aos 30. Não dependem propriamente da idade, os Outonos interiores que atravessamos.
Existem é modos diferentes de encarar essa experiência que, no fundo, nos é tão intrínseca e comum. Podemos desistir simplesmente de esperar, e largamos a vida no parque de estacionamento do pragmatismo mais raso. Podemos trocar a doçura que não conseguimos, por um tipo de acidez quotidiana, que se vai espalhando, entre a ironia e o desalento. Ou podemos, e esse é o olhar da Fé (e esse é o olhar mais necessário), perceber que a «a doçura que não se prova/se transfigura numa doçura/muito mais oura/e muito mais nova»."
P.Tolentino

(Este texto "esbarrou" comigo ontem na folha de notícias da Paróquia de Santa Isabel.Adoro estes encontrões que a vida nos dá!)

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